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A relação entre pacientes e estabelecimentos de saúde é, por essência, marcada pela expectativa de segurança e confiança. Quando alguém se submete a um procedimento médico, espera que os serviços prestados sejam adequados, eficientes e, sobretudo, isentos de falhas que possam comprometer sua saúde.
Contudo, em determinadas circunstâncias, podem ocorrer eventos indesejáveis – como é o caso, por exemplo, de graves infecções hospitalares –, que desafiam os limites da ciência e da técnica disponíveis em certo momento histórico.
No campo do Direito Civil e do Direito do Consumidor, a responsabilidade dos hospitais em tais eventos está atrelada ao conceito de responsabilidade objetiva, previsto no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Essa modalidade de responsabilidade independe de culpa e se baseia na teoria do risco da atividade, de modo que, em regra, o fornecedor responde pelos danos decorrentes de falhas ou defeitos no serviço prestado.
Entretanto, a própria legislação prevê limites a essa objetividade. O § 3º, inciso I, do mesmo artigo 14 estabelece a exclusão de responsabilidade quando o fornecedor comprova que o defeito inexiste, ou seja, que o dano não decorreu de qualquer falha imputável ao serviço.
A aplicação desse limite ganha relevo nos casos em que o estabelecimento hospitalar obedece rigorosamente a protocolos técnicos e científicos vigentes. Órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), editam normas que visam garantir padrões mínimos de qualidade e segurança na prestação dos serviços de saúde.
Quando esses protocolos são seguidos à risca e, ainda assim, ocorre um dano motivado por fatores científicos desconhecidos ou imprevisíveis na época dos fatos, não há que se falar em responsabilidade civil. Isso ocorre porque o liame causal entre a conduta do hospital e o prejuízo sofre uma ruptura, configurando o que o Direito identifica como “fortuito externo”, caracterizado por eventos alheios à esfera de previsibilidade e controle do prestador.
É essencial distinguir o fortuito externo daquele considerado interno. O primeiro consiste em circunstâncias imprevisíveis e inevitáveis, que não decorrem dos riscos inerentes à atividade desenvolvida. Já o fortuito interno está relacionado a situações próprias do funcionamento do negócio ou da prestação do serviço, de modo que, nessa hipótese, permanece a responsabilidade.
Surto de infecção hospitalar
A título exemplificativo, tem-se que, no contexto de infecções hospitalares, se ficar demonstrado que as medidas de desinfecção e esterilização — estabelecidas pela Anvisa ou por protocolos médicos atualizados à época — foram adotadas integralmente, porém, se mesmo assim ocorrer um surto de bactéria resistente ou desconhecida, isso tende a ser analisado como fortuito externo, o que afasta o dever de indenizar.
Um exemplo emblemático envolve a própria Anvisa e a edição de suas normas técnicas. Em 2007, diversos hospitais brasileiros enfrentaram um surto da bactéria “Mycobacterium abscessus”, resistente aos métodos químicos de esterilização de materiais cirúrgicos amplamente utilizados à época, especialmente à solução de glutaraldeído, produto até então recomendado pela Anvisa para esse procedimento.
Esse episódio gerou significativa judicialização envolvendo redes hospitalares, todos sob pretexto da ocorrência de falha na prestação do serviço médico-hospitalar. No entanto, a alteração posterior dos procedimentos de esterilização por parte da Anvisa, através da Resolução nº 431/2008, demonstra que, antes dessa nova normativa, não se possuía conhecimento científico adequado para que o surto fosse evitado, o que confere um caráter de imprevisibilidade ao evento.
Nesse contexto, o julgamento desse tema gerou forte divergência jurisprudencial dos tribunais acerca da responsabilidade civil dos hospitais. O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso (Apelação Cível nº 0002861-80.2008.8.11.0006), julgando caso envolvendo infecção hospitalar pela Mycobacterium abscessus, considerou que o hospital responderia objetivamente pelo evento.
O TJ-MT optou por aplicar, de forma ilimitada, a responsabilidade objetiva prevista no artigo 14, do CDC. Não se analisou as excludentes previstas no §3º, inciso I, do mesmo artigo, que preveem não existir responsabilidade civil quando o defeito não existir ou quando derivar da culpa do próprio consumidor ou de terceiros. Veja-se o entendimento:
“RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO (RETIRADA DE PEDRAS NA VESÍCULA) – AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A CONDUTA DO MÉDICO E O QUADRO INFECCIONSO EXPERIMENTADO PELA PACIENTE – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA – UTILIZAÇÃO DE TÉCNICA COMPATÍVEL AO PROCEDIMENTO – INVIABILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO – RESPONSABILIZAÇÃO DO HOSPITAL – CARACTERIZADA A FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – INFECÇÃO CAUSADA POR “SUPER BACTÉRIA” EM RAZÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO REALIZADO DENTRO DO HOSPITAL – CONSTATAÇÃO DE DANOS – RESPONSABILIDADE OBJETIVA CONFIGURADA – SENTENÇA REFORMADA PARCIALMENTE – APELO PROVIDO PARCIALMENTE. À luz do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, é objetiva a responsabilidade do hospital onde é realizada a cirurgia, da qual se constatou que a paciente foi acometida por infecção hospitalar (superbactéria – infecção hospitalar denominada Mycobacterium abcessus), caracterizando a falha de prestação de serviços, de modo que é plausível a condenação a título de indenização por danos morais. A responsabilização do profissional médico é subjetiva, de modo que se ele utiliza as técnicas pertinentes ao procedimento realizado, não há que ser condenado pelo resultado, pois a este não deu causa, ou seja, não agiu com negligência, imprudência ou imperícia.
Por outro lado, os Tribunais de Justiça do Distrito Federal e do estado do Rio de Janeiro, analisando a mesma matéria (infecção pela bactéria Mycobacterium abcessus por uso da solução de glutaraldeído, antes da edição da Resolução nº 431/2008/Anvisa) adotaram entendimento distinto e cauteloso.
O TJ-DFT destacou que o procedimento de esterilização adotado pelo hospital seguiu à época todos os padrões técnicos vigentes, de modo que a infecção não decorreu de negligência, imprudência ou imperícia:
“6. Inobstante tenha a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA iniciado procedimento investigativo em razão do surto nacional de infecções causadas pelo mesmo agente bacteriológico (Mycobacterium massilense) e constatada a inadequação do método químico de esterilização dos instrumentos cirúrgicos até então recomendado oficialmente, vindo o órgão, inclusive, a proibi-lo em momento posterior (RDC/Anvisa nº 08), o havido não implica a configuração de negligência do estabelecimento hospitalar perante os deveres que lhe estão afetos na adoção de medidas profiláticas de prevenção infecciosa se, à época do procedimento cirúrgico realizado pela paciente acometida da infecção, o método de esterilização utilizado ainda era oficialmente indicado e aceitável”. (Acórdão 1062460, 20110111733823APC, relator(a): Teófilo Caetano, 1ª Turma Cível, DJe de 4/12/2017.)
De forma semelhante, o TJ-RJ concluiu que o evento configuraria verdadeiro fortuito externo, pois a infecção ocorreu antes da divulgação da epidemia por parte da Anvisa:
“O caso em tela refere-se a fortuito externo, eis que, o Hospital Apelado não teve qualquer responsabilidade pela contaminação da Autor/Apelante pela bactéria Mycobacterium abcessus, considerando ter sido realizada a cirurgia em momento anterior a constatação e divulgação da epidemia pela Agência de Vigilância Sanitária.” (Apelação Cível nº 0002868-41.2008.8.19.0203, Relator: Des. Antonio Saldanha Palheiro – 4ª Câmara De Direito Privado, Julgamento: 30/04/2013).
Esses julgados demonstram que, para além da responsabilidade objetiva prevista no CDC, é necessário verificar o elemento da previsibilidade na análise da responsabilidade civil dos fornecedores de serviços de saúde. O artigo 186 do Código Civil exige, para a configuração do ato ilícito, a violação de um dever jurídico que cause prejuízo a outrem.
Se o hospital cumpre todas as exigências impostas pela legislação e pelos órgãos reguladores competentes, a ocorrência de um dano imprevisível não pode ser convertida em obrigação de indenizar sem desnaturar a essência do instituto da responsabilidade.
Em outras palavras, exige-se que a conduta antijurídica seja efetivamente demonstrada — seja por negligência, imperícia, imprudência ou violação de protocolos técnicos. Se inexistir essa conduta, não cabe imputar culpa ou mesmo responsabilidade objetiva ao estabelecimento de saúde.
Ressalte-se que esse posicionamento não significa negar a proteção ao consumidor. Pelo contrário, objetiva-se equilibrar a tutela dos direitos dos pacientes com a realidade prática dos prestadores de serviços, que não podem ser onipotentes diante de todas as variáveis biológicas ou científicas possíveis.
Há um consenso de que exigir uma “onisciência” ou “onipotência” técnica dos hospitais seria desproporcional e traria insegurança jurídica, pois ultrapassaria os critérios de previsibilidade e razoabilidade que norteiam o sistema de responsabilidade civil.
Em suma, sempre que estiverem presentes a diligência, o cumprimento rigoroso das normas regulatórias vigentes e a adoção das melhores práticas médicas disponíveis, o surgimento de um dano imprevisível ou resultante de fato externo rompe o nexo de causalidade e impede a responsabilização.
Essa leitura é coerente com a teoria do risco adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois preserva a lógica de que o fornecedor responde pelos defeitos sob seu controle, mas não por contingências científicas ainda desconhecidas.
Dessa forma, a responsabilidade civil dos estabelecimentos hospitalares encontra seu devido limite na previsibilidade técnica, sem desamparar o consumidor, mas também sem sujeitar o prestador de serviços a um ônus ilimitado e imprevisível.
Fonte: CONJUR – autores: Paulo Liporaci e Terence Zveiter (advogados)