Direito MédicoO DILEMA DE TÂNTALO E A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL

14 de abril de 20250

img. Freepik

Na mitologia grega, Tântalo foi condenado a um tormento peculiar: sedento e faminto, encontrava-se em um lago de águas cristalinas, sob uma árvore carregada de frutos. No entanto, sempre que tentava beber, a água recuava; quando estendia a mão para se alimentar, os galhos se afastavam. Seu castigo era viver na iminência do saciamento, mas sem jamais alcançá-lo.

O sistema de saúde no Brasil enfrenta um dilema semelhante. Pacientes buscam tratamentos essenciais, operadoras tentam equilibrar custos e sustentabilidade, e o Sistema Único de Saúde (SUS) lida com um crescente fardo financeiro. No entanto, em vez de um equilíbrio racional, o que se vê é um setor tensionado pela hiperjudicialização.

A recente disputa entre o Superior Tribunal de Justiça e o Congresso Nacional sobre o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) exemplifica esse descompasso: decisões judiciais ampliam coberturas sem previsão contratual, enquanto legisladores tentam reverter os impactos econômicos dessas medidas. O resultado é um setor asfixiado pela insegurança, onde promessas de acesso universal entram em choque com a realidade financeira.

Disputa entre STJ e Congresso

O rol de procedimentos da ANS funciona como uma referência mínima para a cobertura obrigatória dos planos de saúde. Até 2022, a interpretação dominante no Judiciário era de que essa lista era meramente exemplificativa, permitindo que pacientes acionassem a Justiça para obter tratamentos não previstos. No entanto, em junho daquele ano, o STJ decidiu que o rol deveria ser taxativo, ou seja, limitador da cobertura, com exceções apenas para casos específicos – como terapias sem substitutos no rol, mas com eficácia comprovada por órgãos técnicos.

A decisão gerou reação imediata. Organizações de defesa dos consumidores alegaram que milhares de pacientes poderiam perder acesso a tratamentos inovadores. No Congresso, rapidamente se articulou uma resposta legislativa, culminando na Lei 14.454/2022, que restabeleceu critérios para permitir a cobertura de exames e terapias fora do rol da ANS.

O episódio ilustra um problema recorrente no Brasil: decisões sobre saúde, que deveriam ser tomadas com base em planejamento técnico e equilíbrio financeiro, acabam sendo definidas no calor da pressão política e da litigância individualizada.

Crescimento da judicialização e seu custo econômico

A judicialização da saúde cresce a um ritmo alarmante. Entre 2022 e 2023, houve um aumento de 21,3% no número de ações judiciais relacionadas à saúde. Apenas no último ano, foram registradas 570 mil novas ações, das quais 219 mil estavam atreladas a planos de saúde. A projeção para 2024 é ainda mais preocupante: se mantida a tendência, o país poderá ultrapassar 685 mil novas ações, um acréscimo de 20% em relação ao ano anterior.

Os impactos financeiros são igualmente expressivos. Estima-se que, entre 2020 e 2023, o crescimento da judicialização no setor tenha gerado um prejuízo superior a R$ 17,5 bilhões, dos quais R$ 8 bilhões diretamente atribuídos a tais ações. Muitos desses processos obrigam estados e municípios a custear tratamentos de alto custo, mesmo sem previsão orçamentária, sobrecarregando ainda mais o SUS.

O problema não se limita ao setor público. A insegurança regulatória e a pressão judicial também desincentivam investimentos no setor privado. Nos últimos anos, o custo crescente dos planos de saúde — impulsionado, em parte, pela judicialização excessiva — resultou na saída de mais de 2 milhões de beneficiários da saúde suplementar. Esse ambiente instável inibe a entrada de novas operadoras no mercado e dificulta a atração de investimentos estrangeiros. Grandes players globais, ao avaliarem o cenário brasileiro, frequentemente identificam o alto nível de litigiosidade e a falta de previsibilidade regulatória como barreiras significativas à sua atuação no país.

Judicialização da saúde e leis de ocasião

O embate entre o STJ e o Congresso sobre a lista taxativa da ANS não foi apenas um confronto entre Poderes. Ele exemplificou um problema estrutural na formulação de políticas públicas no Brasil: a aprovação de leis de ocasião, muitas vezes impulsionadas por pressões momentâneas e desprovidas de uma avaliação técnica rigorosa sobre seus impactos de longo prazo.

A Lei 14.454/2022, aprovada às pressas para responder à decisão do STJ sobre o rol da ANS, buscava garantir aos pacientes o direito a tratamentos não previstos na lista oficial. No entanto, ignorou as consequências práticas dessa mudança para a sustentabilidade da saúde suplementar e para o equilíbrio financeiro do SUS. A criação de direitos, quando dissociada da análise dos custos envolvidos e da viabilidade de sua implementação, pode gerar efeitos colaterais graves, resultando na elevação dos preços dos planos de saúde, na redução da oferta de serviços e na sobrecarga ainda maior do sistema público.

O Brasil tem um histórico de legislação reativa, que muitas vezes não passa pelo devido escrutínio técnico antes de ser aprovada. O problema não está na intenção de ampliar direitos, mas na ausência de um debate profundo sobre os impactos regulatórios e econômicos dessas decisões. Um país que busca crescimento sustentável precisa de políticas públicas fundamentadas em dados e experiências internacionais bem-sucedidas, e não de medidas legislativas emergenciais que atendem à pressão do momento, mas fragilizam setores inteiros da economia.

Nesse sentido, espaços de diálogo como a Casa Parlamento que aportem evidências concretas e permitam um debate racional tornam-se cada vez mais essenciais. Ignorar argumentos técnicos pode, no final, prejudicar justamente aqueles que se pretende beneficiar. A sociedade não precisa de mais decisões tomadas no calor das emoções, e sim de um processo legislativo que se paute na clareza dos fatos e na solidez dos argumentos.

Brasil e seu dilema de Tântalo

Tântalo, preso ao seu castigo mitológico, via a água e os frutos ao alcance de suas mãos, mas nunca conseguia tocá-los. Assim também ocorre com o sistema de saúde brasileiro: o país tem recursos, tecnologia e capacidade de oferecer um atendimento eficiente, mas a judicialização excessiva distorce as regras do jogo, criando um cenário onde as soluções se tornam inalcançáveis.

Se o Brasil deseja garantir um acesso justo à saúde sem comprometer a sustentabilidade do setor, precisa abandonar a lógica da judicialização como único caminho. O planejamento técnico, a previsibilidade regulatória e o respeito aos limites econômicos são fundamentais para que o setor funcione de forma equilibrada.

O país tem duas escolhas: continuar refém da insegurança jurídica e do aumento exponencial dos custos, ou construir um sistema baseado em regras claras, dados concretos e experiências internacionais bem-sucedidas. A decisão, como na mitologia, definirá se continuaremos condenados à frustração ou se conseguiremos, enfim, alcançar o equilíbrio necessário para um sistema de saúde funcional e justo.

é CEO da Esfera Brasil e do Instituto Esfera de Estudos e Inovação.

 

 

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